Privacidade é colocada à prova em testes do real digital; entenda como a moeda vai funcionar

O objetivo é replicar nesse novo ambiente o mesmo grau de proteção aos clientes bancários exigido pela legislação, ou seja, garantir que transações só possam ser rastreadas pelas partes interessadas.

Privacidade é colocada à prova em testes do real digital; entenda como a moeda vai funcionar

(FOLHAPRESS) – A privacidade financeira dos usuários será colocada à prova nos primeiros testes da moeda digital brasileira -o real digital, em desenvolvimento pelo Banco Central. O objetivo é replicar nesse novo ambiente o mesmo grau de proteção aos clientes bancários exigido pela legislação, ou seja, garantir que transações só possam ser rastreadas pelas partes interessadas.

Nesta fase, também serão testadas as funcionalidades que darão ao cidadão a capacidade de controlar e programar o uso do seu dinheiro eletrônico. A ideia é que o uso da CBDC (Central Bank Digital Currency) brasileira seja tão simples quanto fazer um Pix, mas traga ganhos em transações mais complexas e hoje pouco acessíveis à população brasileira.

Em entrevista à Folha, Fabio Araujo, coordenador do real digital no BC, define a nova versão da moeda nacional como “uma plataforma para democratizar o acesso aos serviços financeiros no Brasil”.

No futuro, o real digital abrirá a possibilidade de fazer, por exemplo, a compra de veículos atrelada a contratos inteligentes -documentos digitais programados por meio de tecnologia para serem executados de forma automática sob as condições acordadas.

Na prática, isso funciona de modo que o registro do carro em negociação seja transferido automaticamente para o comprador assim que o pagamento for efetivado por ele, e tudo ocorre simultaneamente.

Eliminar esse hiato no processo de compra e venda traz mais segurança para um acordo comercial entre pessoas desconhecidas. A lógica serve também para imóveis, produtos comercializados em plataformas eletrônicas, entre outros itens. Nos termos técnicos, esse tipo de negociação se chama DvP (entrega versus pagamento).

Hoje, as transações envolvendo contratos inteligentes não estão disponíveis em um ambiente regulado e necessitam de intermediários, o que torna o modelo economicamente inviável para negociações de itens de valor mais baixo. “Esse tipo de instrumento, que é muito caro e hoje só está acessível para algumas transações, poderá ser feito a um custo marginal”, projeta Araujo.

O foco do projeto do real digital é levar serviço de varejo para toda a população. Ao longo das discussões sobre o tema, o BC concluiu que as pessoas não precisam ter o real digital “stricto sensu” em suas mãos para ter acesso a seus benefícios.

“Tem vários inconvenientes, de risco de desintermediação, de problemas macroeconômicos, que podem acontecer no ambiente onde há uma moeda do Banco Central direto na mão das pessoas”, pondera o coordenador. Ele ressalta que hoje uma pequena parcela de papel-moeda circula na economia, enquanto a maioria das pessoas usa a “versão bancária” da moeda.

Para evitar uma mudança abrupta no sistema financeiro e assimetrias regulatórias entre os sistemas, a autoridade monetária atualizou as diretrizes da moeda digital e convencionou que o real digital ficará concentrado para atividades de atacado, ou seja, restrito a pagamentos entre o BC e instituições financeiras.

A população, por sua vez, terá acesso ao real chamado de tokenizado. Nesse caso, a representação da moeda brasileira será o token [representação digital de um ativo real] de um depósito mantido por instituições financeiras ou instituições de pagamento.

“Os bancos vão criar stablecoins [criptomoedas de baixa volatilidade, com lastro em ativos mais seguros] em cima dos depósitos. E as stablecoins vão ser garantidas pelo BC, um para um, em uma moeda digital”, detalhou em setembro de 2022 Roberto Campos Neto, presidente da autoridade monetária.

“Então, você vai ter stablecoins dos bancos A, B e C. Todos são fundíveis, todos têm o mesmo valor e todos podem ser convertidos na moeda digital emitida pelo BC”, complementou.

Neste mês, o BC inicia a incorporação dos 16 participantes (individuais ou consórcios) selecionados para a infraestrutura onde serão realizados os testes. A rede escolhida para essa fase de desenvolvimento foi a Hyperledger Besu. Ela é baseada na Ethereum, plataforma que usa tecnologia blockchain para registrar transações com ativos digitais.

Segundo Aristides Cavalcante, chefe do escritório de Inovação Tecnológica e Segurança Cibernética do BC, a Hyperledger Besu foi escolhida por ser uma rede que conta com participantes conhecidos, ter diversidade de provedores de tecnologia e ter um ecossistema aberto de governança.

“Essa plataforma tem por objetivo a construção de novos modelos de serviços financeiros”, justifica o técnico. Ele também argumenta que “é importante não colocar o sistema financeiro dependente de um único provedor de tecnologia”.
Por se tratar de um sistema que possui código aberto, não há a exigência de fazer uma concorrência pública e não há despesas com licenciamentos.

Se a plataforma for bem-sucedida durante a fase de testes, ela pode ser escolhida como tecnologia definitiva da versão tokenizada da moeda brasileira. “Temos que realmente saber se conseguimos, com essa tecnologia, atingir os requerimentos mínimos de privacidade e de programabilidade”, diz Cavalcante.

No piloto, esses aspectos serão testados em duas frentes ao longo de 18 meses. A primeira, prevista para durar até dezembro, envolve a troca de dinheiro entre os participantes usando tanto o real digital propriamente dito quanto o real tokenizado.

A segunda envolve a compra e venda de título público federal entre clientes de instituições diferentes e deve ser concluída em fevereiro de 2024. “O objetivo final é permitir que duas pessoas troquem entre si título público federal”, diz Araujo.

O BC argumenta que, ao escolher um título público federal para essa nova fase do projeto, tentou ser o mais neutro possível e abrir espaço para a participação do Tesouro Nacional, que já havia manifestado o desejo de colaborar com os trabalhos.

Em um cenário hipotético, um cliente de um restaurante pode emprestar dinheiro via QR Code para que o dono do empreendimento abra uma filial ou faça uma reforma no local. Assim que o dinheiro é transferido, a pessoa recebe automaticamente o título de dívida em sua carteira.

“À medida que essa tecnologia seja mais utilizada pela população, qualquer um vai poder pegar dinheiro emprestado com o outro diretamente”, diz Araujo. “A possibilidade de criar produtos é muito grande.”

Nesta primeira etapa do piloto, o processo é feito em um ambiente simulado, sem envolver transações ou valores reais. A expectativa é que no fim de 2024 ou início de 2025 clientes reais possam fazer as primeiras operações com o real digital.

ENTENDA A MOEDA DIGITAL BRASILEIRA

O que é o real digital?

É uma CBDC (Central Bank Digital Currency), ou seja, uma moeda digital emitida por Banco Central. Ela é uma nova forma de representação do real e poderá ser convertida em outras formas de pagamento disponíveis hoje, pois terá o mesmo valor do dinheiro tradicional.

Como será a versão brasileira da CBDC?

O real digital em si será voltado para atividades de atacado, enquanto a população terá acesso ao real tokenizado. Nesse caso, a representação digital da moeda brasileira será o token de um depósito mantido por instituições financeiras ou instituições de pagamento.

Quais as diferenças do real digital para as criptomoedas e stablecoins?

O real digital é a expressão eletrônica da moeda brasileira, enquanto criptomoedas e stablecoins são de emissão privada e, em geral, não dispõem de regulação. Criptomoedas, como bitcoin e ethereum, apresentam grande volatilidade. Já stablecoins buscam corrigir esse problema atrelando seu valor, em geral, a uma moeda soberana.

Qual a diferença entre uma moeda digital de varejo e de atacado?

Uma moeda digital de atacado é voltada para transações de valores elevados, envolvendo bancos, cooperativas, instituições de pagamento e eventualmente grandes empresas. Já uma moeda digital de varejo busca atender às necessidades de indivíduos e empresas de todos os portes, podendo ser utilizada para pagamentos e para operações financeiras cotidianas em quaisquer faixas de valores.

O que o real digital traz de novidade?

Além de poder ser utilizado em conjunto com contas bancárias, contas de pagamentos, cartões e dinheiro em espécie, ele permitirá acesso a serviços financeiros que estão sendo desenvolvidos com base em novas tecnologias, como contratos inteligentes e dinheiro programável (valor monetário digital que pode ser programado para ser gasto somente para determinada finalidade).

Um exemplo prático de uso é a possibilidade de uma família transferir uma quantia de dinheiro aos filhos menores de 18 anos com a certeza de que o montante poderá ser gasto unicamente com atividades de culturais, como cinema, não com algo não autorizado pelos pais.

Qual será a tecnologia usada no real digital?

A rede escolhida para a fase de testes foi a Hyperledger Besu. Ela é baseada na Ethereum, plataforma que usa tecnologia blockchain para registrar transações com ativos digitais, é capaz de executar contratos inteligentes e tem condições de operar em grande escala. Se for bem-sucedida durante o piloto, a Hyperledger Besu pode ser escolhida como tecnologia definitiva da versão tokenizada da moeda brasileira.

Quais são os próximos passos para o desenvolvimento do real digital?

A fase piloto terá duração de 18 meses, com previsão de término em fevereiro de 2024. A expectativa é que no fim do próximo ano ou no início de 2025 clientes reais possam fazer as primeiras operações (ainda em modelo de testes) com o real digital. O cronograma pode sofrer alterações.

O nome real digital é definitivo?

Não. O BC estuda a nova identidade da moeda digital brasileira, que será rebatizada. A ideia é que seja escolhido um nome curto e sonoro para impulsionar a sua popularidade após o lançamento, como é o caso do Pix. A divulgação da nova marca ainda não tem data definida, mas deve ocorrer durante a fase de testes

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