Tendas voltam a ser montadas na cracolândia uma semana após dispersão
A rua Doutor Frederico Steidel se tornou um dos principais pontos de concentração dos usuários de drogas
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há três dias, desde a chegada da cracolândia à rua onde mora, entre as avenidas São João e Duque de Caxias, na região central paulistana, o neuroeducador José Roberto Barbosa dos Santos, 47, não abre as cortinas do apartamento em que mora. Ele também dorme com duas facas e um martelo perto da porta, “por segurança”, diz. Um baú de madeira é usado como obstáculo a possíveis invasores.
A rua Doutor Frederico Steidel se tornou um dos principais pontos de concentração dos usuários de drogas desde a realização da ação policial que esvaziou a praça Princesa Isabel, a cerca de 1 km dali, há uma semana. Nos últimos dias, o grupo tem se alternado entre a via e a rua Helvétia, no lado oposto da avenida São João.
Barracas voltaram a ser montadas na nova cracolândia na tarde desta quarta-feira (18) pela primeira vez desde a dispersão no antigo endereço. Fios foram estendidos de um lado ao outro da rua como uma espécie de varal onde as lonas pretas foram penduradas. De acordo com a polícia, os traficantes usam as tendas para vender as drogas sem serem flagrados pelas câmeras de segurança e pelos drones da GCM (Guarda Civil Metropolitana).
A presença do fluxo na porta do morador é recorrente desde a tarde de terça (17), quando os usuários saíram da Helvétia pela última vez.
Não está clara a motivação da mudança. Especula-se que tenha sido pelo fato de a rua Doutor Frederico Steidel ser menos habitada e com menos comércio do que a Helvétia, que tem maior trânsito de veículos.
Outra possibilidade para a mudança seria evitar corte no fornecimento de energia devido a roubos de fios elétricos, o que levou técnicos à rua Helvétia após o fluxo ter passado a noite lá. De acordo com uma pessoa que acompanha o fluxo, porém, a falta de energia relatada mais cedo nesta semana teve origem em outro quarteirão.
Com a rua e a calçada tomadas por pessoas deitadas em cobertores cinzas, para entrar no prédio é preciso olhar com cuidado onde colocar o pé. No portão, um homem de cabelos brancos dorme, obrigando os moradores a pular por cima dele para chegar em casa. Em volta, pessoas consomem drogas e trocam qualquer tipo de objeto por pedras de crack.
Os moradores do prédio têm evitado olhar pela janela. Um deles foi ameaçado pelos usuários, que o acusaram de estar filmando o fluxo. “Eles começaram a jogar pedras e a gritar”, diz José Roberto.
Um dos seus vizinhos, o bancário Anderson Santos Silva, 38, está sem poder tirar o carro da garagem desde domingo, pois a rua está intransitável.
Na mesma rua funciona a empresa de Paulo Sérgio Rodrigues, 62, que trabalha com cabeamento de fios elétricos no local há 25 anos. Com medo de saqueamento, ele conta que passou a transportar os rolos do material em caixas de papelão já que os caminhões estão impossibilitados de estacionar na rua. “Estou sem trabalhar há dois dias. Minha sobrinha que faz os orçamentos está com medo de vir trabalhar.”
O furto de cabos de energia é comum em locais onde há aglomerações de usuários de drogas pelo valor comercial do fio de cobre, extraído após a queima da capa de plástico.
A poucos metros do prédio, mora o enfermeiro Newton Viana de Oliveira, 49, em uma casa com as duas irmãs. Ele conta que não sai de casa para trabalhar desde a chegada do fluxo, no domingo. “Tenho medo de sair e deixar a minha casa.”
Na manhã desta quarta, ele diz que pediu licença aos usuários para varrer a calçada. “Me ameaçaram de agressão porque eu disse que precisava da minha entrada livre”, diz. “Estamos sem luz nos postes da rua porque eles arrancaram os fios.”
Na casa ao lado mora a jornalista Sueli Nicolay, 70. Do quintal de muro baixo dá para ver a movimentação dos usuários e o tráfico de drogas. Ela diz que tentaram pular o muro algumas vezes. Durante cerca de uma hora em que a reportagem ficou na casa dela na tarde desta quarta, a campainha foi tocada ao menos cinco vezes. “Eles tocam o dia todo para pedir tudo que você pode imaginar.”
Ela conta que dorme em frente ao monitor que dá acesso às imagens da câmera de segurança do portão. “Tive crise de pânico e tenho que dormir com os ouvidos tampados por causa do barulho. Eles cantam, gritam e brigam a noite toda, tocam até tambor.”
Com poucas roupas dentro de duas malas, o neuroeducador que mora no prédio em frente à cracolândia espera o momento em que o fluxo de usuários fique um pouco menor para se mudar para a casa do namorado. “Estou trancado na minha casa toda fechada. Não me sinto mais seguro aqui. Era um lugar tranquilo e as crianças brincavam na rua”, diz o morador. Outras duas vizinhas também deixaram o prédio nos últimos dias, segundo ele.
A professora universitária Juliana Serzedello, 42, mora na rua de cima de onde o fluxo está concentrado e também teve a rotina afetada. “Eu não saio de casa desde que eles chegaram, estou preocupada a hora que a minha comida acabar”, diz. “Meu companheiro agora tem que acordar meia hora mais cedo para pegar o metrô em outra estação”, afirma ela, que mora ao lado da estação Santa Cecília.
Morador de outro prédio na rua Doutor Frederico Steidel, o escritor Alexandre Mortágua, 27, conta que chegou de viagem e descobriu que a cracolândia havia se mudado para lá.
“É inconveniente? É, mas o que não está inconveniente? O que vão fazer com as centenas de pessoas na rua da minha casa?”, diz. “A prefeitura não tem programa de saúde, moradia e trabalho efetivo para essas pessoas, estado também não.”
O morador também critica a ação policial na praça Princesa Isabel. “Eu estou ouvindo ‘crack, pó, maconha de 10’ da minha janela desde essa operação supostamente bem-sucedida. O que vão fazer? Internar à força?”
Em nota, a Polícia Militar, por meio do 13º Batalhão, que atua no local, disse que executa policiamento preventivo e ostensivo com a presença de duas bases fixas e duas móveis na região onde está a cracolândia.
A Polícia Civil afirmou que, no momento, avalia todas as possibilidades para combater o tráfico e o uso aberto de drogas, dentro dos limites da lei.
A Prefeitura de São Paulo disse em nota que “a Guarda Civil Metropolitana realiza o policiamento comunitário e preventivo na região central diuturnamente com rondas periódicas”.
A Subprefeitura Sé afirmou que faz a coleta e limpeza diariamente na rua, independentemente da presença de pessoas no local.