Netflix, ao lançar seu primeiro filme em árabe, pode quebrar tabus da região
Até recentemente, o grande filão em países como a Síria e o Egito eram as novelas, principalmente as novelas de ramadã, exibidas durante o mês sagrado do islã –quando a população está morgando em casa, jejuando, com tempo livre para a televisão
Foi nesse sentimento universal que a Netflix apostou ao lançar seu primeiro filme em árabe, “Perfeitos Desconhecidos”, dando um passo importante em termos de mercado audiovisual.
A trama, como o medo, não é nova. Na verdade, é uma fórmula já bem testada. É mais uma adaptação do filme italiano “Perfeitos Desconhecidos”, de 2016, que já teve quase 20 remakes ao redor do mundo. A novidade é que, agora, o enredo se passa no Líbano e as conversas estão em árabe.
Que o “Perfeitos Desconhecidos” árabe seja uma adaptação não tira seu mérito. O elenco brilha com a força de mil sóis, contando com os libaneses Nadine Labaki, de “Caramelo” e Adel Karam, de “O Insulto”, além da egípcia Mona Zaki, de “Sherazade, Conte uma História”. Os diálogos são ágeis, num pá-pum impecável entre os atores. O drama fisga o público de imediato.
Mas que a Netflix tenha escolhido um remake para estrear no mundo de fala árabe parece dizer bastante sobre a sua estratégia para a região. “Eles estão se baseando em fórmulas de sucesso provado, com um elenco de grandes estrelas”, afirma Joseph Fahim, um proeminente crítico de cinema libanês.
Parece ser a mesma estratégia para as séries em árabe lançadas pela plataforma nos últimos anos, Fahim diz. “Paranormal”, sobre um cientista que investiga fenômenos misteriosos no Cairo, é inspirada em uma coleção de livros egípcios extremamente popular. “AlRawabi School for Girls”, sobre vítimas de bullying planejando vingança, se sustenta no modelo de drama escolar típico dos Estados Unidos.
Nesse sentido, o crítico diz não esperar grandes surpresas da Netflix nos quesitos criatividade e inovação. O que não quer dizer que a entrada da gigante do streaming seja uma notícia ruim.
Diferentemente das empresas locais, a americana pode tocar em temas considerados tabu na região –afinal, não presta contas para a censura dos governos da região. “O que a Netflix tem que os outros não têm é a sua liberdade”, Fahim diz.
Isso explica o personagem homossexual que aparece em “Perfeitos Desconhecidos”. Basta comparar com o que acontece no arrasa-quarteirões “O Edifício Yacoubian”, de 2006, uma das produções mais caras da história do Egito, que conta a história das famílias paupérrimas vivendo no telhado dos prédios do Cairo.
O personagem gay de “O Edifício Yacoubian” é um homem afrancesado e depravado que serve como prova de uma suposta influência negativa de culturas externas. Já o personagem gay de “Perfeitos Desconhecidos” é complexo, sutil e desafia os moralismos.
“O conteúdo da Netflix vai ser mais ousado do que o de outras produções da região, mas sempre dentro desse marco comercial seguro”, Fahim afirma. “Eles estão expandindo o seu mercado.”
O mercado de fala árabe, que a Netflix tenta desbravar, tem passado por importantes transformações nos últimos anos –uma das razões para a aposta da empresa.
Até recentemente, o grande filão em países como a Síria e o Egito eram as novelas, principalmente as novelas de ramadã, exibidas durante o mês sagrado do islã –quando a população está morgando em casa, jejuando, com tempo livre para a televisão.
O cenário começou a mudar. A indústria, outrora centrada em lugares como Damasco e Cairo, está gravitando em direção aos países do golfo, como os Emirados Árabes. A Arábia Saudita, que passa por um controverso processo de abertura cultural, está se tornando um gigante consumidor e produtor. É um mundo em transição o que a Netflix adentra.
E a competição vai ser dura. Os grandes serviços de streaming no mundo de fala árabe são o Shahid, com sede nos Emirados Árabes, e o WATCH iT, do Egito. Ambos têm um público de classes mais baixas. Já a Netflix e o Mubi atingem uma população de elite, internacionalizada, diz Fahim.
A posição da Netflix neste mercado talvez explique por que a versão árabe de “Perfeitos Desconhecidos” se passa em uma belíssima mansão, aliás.
O cenário se parece bem pouco com o típico do Líbano, um país que está hoje mergulhado numa crise econômica sem precedentes. Segundo a ONU, mais de 75% da população do país vive em situação de pobreza. É bastante incômodo, portanto, quando um dos personagens se gaba no início do filme de que vai levar uma garrafa de vinho de US$ 40 para o jantar na casa do casal de amigos –uma quantia exorbitante em Beirute.
Entre crises econômicas, talvez um dos grandes impactos da Netflix seja justamente o resgate do setor audiovisual da região. Fahim explica que cineastas independentes costumam ter empregos paralelos em busca do sustento, já que cinema e a televisão não bastam.
A chegada de uma empresa do porte da Netflix pode oferecer, assim, oportunidades para que eles se dediquem totalmente ao ramo. As equipes técnicas, por sua vez, terão um número maior de vagas à sua disposição –o que significa, também, treinamento para uma mão de obra qualificada. “A Netflix pode oferecer uma boia salva-vidas.”