TSE não alcança Telegram e expõe desafios de lei contra fake news; entenda
A dificuldade de alcançar o Telegram, que não tem sede nem representante legal no país, está inserida em um debate maior sobre os desafios de tornar legislações nacionais efetivas em um mercado de serviços na internet cada vez mais globalizado
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com pouca moderação e uma estrutura propícia à viralização, o Telegram é uma das preocupações do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para as eleições de 2022. Entretanto, ao tentar contato com a empresa, o órgão não obteve resposta.
A dificuldade de alcançar o Telegram, que não tem sede nem representante legal no país, está inserida em um debate maior sobre os desafios de tornar legislações nacionais efetivas em um mercado de serviços na internet cada vez mais globalizado.
No Congresso, o projeto de lei das fake news pretende tornar obrigatório que redes sociais e aplicativos de mensagem tenham representantes legais no país.Entenda o que está em jogo e quais os desafios.
Por que a Justiça Eleitoral procurou o Telegram?
Frente à dimensão que o tema da desinformação ganhou nas eleições de 2018, o TSE criou um Programa de Enfrentamento à Desinformação e, no pleito de 2020, foram firmadas parcerias com as principais plataformas como Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp.
Apesar do crescimento que o Telegram tem ganhando no país, a empresa não deve figurar entre os parceiros da próxima eleição. O TSE tentou estabelecer a parceria, mas não obteve resposta.
Qual o cenário atual?
Diante de uma atuação relativamente mais proativa das principais redes sociais em moderar conteúdos, grupos de extrema direita têm migrado para outras plataformas que possuam regras menos restritivas ou até mesmo nenhuma moderação.
O movimento ganhou força com a suspensão de Donald Trump, então presidente do Estados Unidos, das principais plataformas mundiais após a invasão do Congresso americano.
No começo de outubro, na semana em que atingiu a marca de 1 milhão de inscritos em seu canal no Telegram, o presidente Jair Bolsonaro criticou a moderação das plataformas em relação à pandemia.
“Logicamente que nós ampliamos a nossa rede para o Telegram, [porque] não tem censura. E tem que ser assim, se você hoje em dia mostra uma matéria, uma suspeita, um problema sobre a vacina, você é tachado de terraplanista, de negacionista, propagador de fake news”, disse durante sua live semanal.
Além de ter alta capacidade viralização com grupos que podem comportar até 200 mil membros, em relação aos canais, o Telegram possui uma dinâmica que se assemelha muito mais a redes sociais, não modera conteúdo a não ser em casos como de terrorismo.
Desde janeiro, o presidente vem divulgando seu canal no Telegram. Na última quinta-feira (9), pela primeira vez, ele fez a transmissão ao vivo pelo aplicativo.O que esperar de 2022?
Em comparação com as últimas eleições presidenciais, Thiago Tavares, presidente da SaferNet, entidade de segurança cibernética, considera que haverá uma maior variedade de sites e aplicativos para circulação de conteúdos.
“A gente vê claramente uma tendência de pulverização das plataformas, então aquilo que estava muito concentrado no WhatsApp em 2018, muito provavelmente estará mais pulverizado em 2022. E o Telegram surge nesse cenário como um provável elemento desestabilizador”, diz.
Além disso, Tavares aponta que redes sociais sem moderação, embora tenham menos usuários que as principais, acabam funcionando como uma espécie de repositório de conteúdos mais extremistas, que são então distribuídos por outros canais, como WhatsApp e Telegram.
“Esse local é o que se chama de provedores ‘bulletproofs’, ou seja, à prova de bala, porque eles não removem nada.”É possível criar regras mínimas para as plataformas e aplicativos?
Além da pressão da opinião pública sobre as plataformas, há também uma movimentação do Legislativo para criar regras sobre o tema.
No Brasil, o assunto é alvo do projeto de lei das fake news, aprovado em 2020 no Senado e agora em tramitação na Câmara.
Um dos desafios, contudo, é como tornar a lei efetiva e quais providências tomar no caso de empresas que não obedecem a legislação.
A versão aprovada no Senado determinou que as redes sociais e as empresas de mensagens com mais de dois milhões de usuários são obrigadas a ter representante legal e sede no país.
Já o texto aprovado pelo grupo de trabalho da Câmara, apenas o primeiro item sobre representação legal permaneceu no texto -que ainda passará pelo plenário da Casa e depois deve voltar ao Senado.
Assim como o Telegram, há diversas outras empresas e redes sociais que ofertam seus serviços a brasileiros, mas não possuem representação no país.
Empresas estrangeiras têm que obedecer a lei brasileira?
O fato de uma empresa não ter sede nem representação legal no país, não significa que ela não tenha que obedecer à legislação brasileira.
A advogada Patrícia Peck, que é também membro do CNPD (Conselho Nacional de Proteção de Dados), afirma que o próprio conceito de soberania nacional, previsto na Constituição Federal, já faz com que as empresas tenham que obedecer à lei do país.
“Qualquer empresa que ofereça produtos ou serviços para um cidadão brasileiro tem que atender a legislação brasileira”, diz. “A outra parte disso é: como a gente consegue ser eficaz para obrigar que uma empresa, que não está no território nacional, atenda à legislação brasileira?”, questiona.
Como punir empresas que não cumprem a legislação?
No projeto de lei das fake news, as penalidades mais severas são a proibição de seu funcionamento no país e a suspensão temporária. As punições mais leves são a advertência e a multa.
Enquanto medidas de suspensão e bloqueio são feitas pela infraestrutura da rede, punições como multas, acabam dependendo da cooperação com outros países, no caso de empresas que não estejam no Brasil.
Patricia Peck aponta que, em caso de descumprimento reiterado por parte de uma empresa, pode-se chegar a uma atuação em nível diplomático, criando por exemplo barreiras comerciais com determinado país.
“É assim que a gente acaba operando em nível internacional”, explica. “Para forçar que localmente a autoridade daquele país exija que aquela empresa cumpra com as leis brasileiras.”
Peck acredita que, além de estabelecer penalidades, seria interessante criar benefícios para quem cumpre a lei e colabora com as autoridades, de modo a estimular as empresas a serem mais cooperativas.
Qual a diferença entre ter ou não representação no país?
A diferença fundamental está no nível de dificuldade para notificar e aplicar punições a uma empresa.
Isso porque, quando ela não tem representante no Brasil, aplicar uma multa, por exemplo, vai depender de instrumentos legais internacionais acordados com outros países, como explica Luiza Brandão, que é diretora do Iris (Instituto de Referência em Internet e Sociedade) e mestre em direito.
“Hoje existem estruturas de reconhecimento de sentenças de decisões estrangeiras”, explica ela. “Mas isso tudo é muito lento, não há que se negar.”
Representação ou sede no Brasil resolve o problema?
Tanto Peck quanto Brandão consideram que a obrigatoriedade de as empresas terem sede no Brasil, conforme previsto na versão do projeto das fake news aprovada no Senado, seria negativa.
O entendimento é que a obrigação afastaria parte das empresas do país ou geraria mais gastos para aquelas que, mesmo sem ter sede no Brasil, já cumprem a lei. “Isso pode gerar um retrocesso econômico do ponto de vista da competitividade internacional”, afirma Peck.
Por outro lado, ambas avaliam que tornar obrigatória a indicação de um representante legal, ou de um ponto de contato no país, pode ser positivo sem gerar um ônus excessivo (como seria o caso da sede). Brandão defende, contudo, que seria preciso definir melhor na lei o que se espera desse representante.
Ela destaca ainda que há um desafio implícito em tentar tornar uma lei brasileira eficaz. “A empresa não estabeleceu [o representante], a gente faz o quê?”, questiona.
“No caso de se obrigar a empresa a ter um representante legal e ela não cumprir, os mecanismos que seriam utilizados seriam esses que nós temos hoje”, diz Brandão, se referindo aos acordos internacionais que já existem hoje para reconhecimento de sentenças.
O que seria o bloqueio de um aplicativo?
A situação já é conhecida por brasileiros, que tiveram em mais de uma oportunidade o WhatsApp bloqueado após decisão judicial.
Especialistas são mais reticentes quanto à medida, pois ela pune todos os usuários, e não só as empresas que estão descumprindo a legislação.
Além disso, há uma dificuldade de tornar a medida totalmente efetiva. Em primeiro lugar, porque por meio de VPNs é possível simular que se está em outro país e, assim, continuar acessando serviços bloqueados no Brasil.
Além disso, não necessariamente é possível bloquear apenas um serviço específico. Na Rússia, por exemplo, uma determinação judicial de suspensão do Telegram, em 2018, acabou tendo como efeito colateral o bloqueio de outros serviços que estavam hospedados no mesmo endereço.
O Telegram não responde apenas no Brasil?
Não. A dificuldade de interlocução com o aplicativo não é uma particularidade do Brasil.
Exemplo disso é uma carta enviada na última quarta-feira (8) pela organização internacional Access Now, que atua na defesa dos direitos humanos no ambiente digital, ao CEO e co-fundador do Telegram, Pavel Durov.
Assinada por outras organizações internacionais como Artigo 19 e pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ, na sigla em inglês), o documento aponta, entre outras demandas, que há problemas para denunciar ameaças de violência pelo aplicativo e recomenda que a empresa precisa oferecer canais de comunicação efetivos e ser mais transparente.
Por outro lado, a carta também cita o Telegram como uma importante ferramenta para ativistas ao redor do mundo. Cita, como exemplo, as medidas da empresa para buscar garantir acesso ao aplicativo na Belarus, quando o ditador Aleksandr Lukachenko bloqueou diversos sites e plataformas e o próprio acesso à internet.
O que o TSE vai fazer?
Frente à falta de resposta do Telegram, o TSE diz que terá como foco parcerias com outras entidades, de modo a identificar e responder à desinformação contra o processo eleitoral que circula nessas redes.
Um desses parceiros é o projeto Eleições sem Fake do Departamento de Ciência da Computação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que em 2018 já tocava o Monitor do WhatsApp e que, para as próximas eleições, fará também monitoramento do Telegram.
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