Games viram plataforma para música e geram receitas milionárias no meio virtual
A mistura da música com games estão dominando as plataformas
PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Um MC de funk canta ao lado de um atleta em uma festa que marca a estreia de uma nova franquia esportiva. Em um festival, uma jovem artista francesa se apresenta com uma performance experimental. Uma girl band de k-pop ganha fama global em menos de dois anos, chegando a pouco mais de 450 milhões de visualizações num único clipe. Tudo soa típico e mesmo desvinculado nos dias de hoje, mas uma olhada cuidadosa revela outra realidade –uma virtual.
A banda em questão, a “K/DA”, é formada apenas por personagens virtuais e foi criada a partir da mitologia do “League of Legends”, famoso game de batalhas estratégicas. A dita artista francesa, Oklou, às vezes se apresenta apenas com um controle de videogame que, ao comandar um personagem na tela, faz música. E o MC é o Poze do Rodo, conhecido nome da nova geração do funk, que cantou ao lado do gamer Nobru, o craque brasileiro do game “Free Fire”. A ocasião era a estreia de um mapa do game “GTA RP” inspirado nas favelas cariocas.
Videogames sempre fizeram uso do som em sua linguagem. O console Atari 2600, lançado em 1982, podia gerar apenas 32 notas musicais. Eram blips e blops que serviam de índice para ações realizadas no jogo, como um golpe desferido. Não foram precisos nem 30 anos para que o som dos games se desenvolvesse em ícones da cultura globalizada. Quem não se lembra do barulho da moedinha no “Mario”? Títulos como “Tony Hawk’s Pro Skater”, famoso pela trilha sonora, e o simulador musical “Guitar Hero”, quinto jogo mais vendido no mundo em 2006, também são memoráveis.
Hoje, os games têm se consolidado como plataformas totalizantes de diversas atividades humanas. Música e som, nesse universo, são menos coadjuvantes que objeto de manipulação, produção e divulgação. Essa evolução rizomática e simbiótica entre o que é jogado e o que é ouvido foi acelerada pela pandemia e extrapola consoles, formatos e dígitos. De acordo com a consultoria IDC, o mercado de games global teve receita de US$ 177 bilhões em 2020. O valor ultrapassa em nove vezes a receita mundial da indústria fonográfica.
Nesse cenário cabem o rapper Travis Scott, que já se apresentou para 12 milhões de pessoas transfigurado em colosso no jogo de tiro “Fortnite”; as VTubers, avatares que cantam durante horas no YouTube; micro-gêneros efêmeros e formas musicais impensáveis há alguns anos, como as simulações de trenzinhos ou carros de som brasileiros no game “Roblox” e o “gun sync” –tocar sucessos do pop usando os ruídos de armas em games–; e o show do MC Poze do Rodo.
No formato de live, a apresentação do MC foi transmitida em um palco virtual no game. O cenário tinha caixas de som, ruelas e diversos elementos que reproduziam uma favela carioca por onde todos os personagens podiam andar livremente. A performance podia até parecer simples ante a miríade de possibilidades musicais aberta pelos games, mas havia simbolismos de peso em jogo.
Poze cantou seus sucessos junto de alguns membros da Fluxo, equipe que reúne streamers de franquias como “Free Fire” e chancelou o evento. Os garotos não tinham a desenvoltura de jogadores de futebol sobre o palco de um show de pagode, mas game e funk tampouco se mostravam como mundos distantes um do outro –como se poderia imaginar nos anos 1980 e 1990.
Outro ponto: em março, Poze e outros nomes do funk foram indiciados pela polícia porque teriam feito shows no Rio de Janeiro durante os dias de Carnaval. A volta do artista aos palcos acabou por tomar forma em um show incomum dentro de um mundo virtual.
“O funk é gigante, o trap também está vindo muito forte, então tem muita gente que curte games que também escuta nosso som. Mas também tem um público que é ligado em outros estilos, pessoas de outras regiões do país onde o funk pode não ser tão forte. Por isso o show foi pica”, diz Poze. “Não teve aquela energia do palco de verdade, mas, em número de pessoas, esse foi o maior show da minha vida.”
Cerca de 150 famosos gamers brasileiros foram convidados para o evento virtual. Com seus personagens, eles assistiam ao show e retransmitiam a ação em canais do YouTube ou da Twitch para um público de dezenas de milhares. “Só na minha live tinha mais de 30 mil pessoas”, explica Nobru, principal nome da Fluxo e um dos responsáveis pelo novo cenário do “GTA RP” –o “Complexo”. “O Poze tem uma música que fala ‘olha como o Complexo tá lindo’, e isso também remete ao mapa.”
O “GTA RP” é uma versão alternativa da famosa série “Grand Theft Auto” criada pelos próprios usuários. Ela mescla elementos do estilo RPG à dinâmica do jogo original em partidas online nas quais cada participante encarna um personagem.
“Tinha o horário de pegar o ônibus para ir ao show, e chegando lá tinha uma galera, tinha um palco, um telão, a gente ficou dançando, era igualzinho a um show de verdade”, conta Ale Maze, gamer que também faz parte da Fluxo e tem meio milhão de inscritos no seu canal do YouTube. “É como se aquilo ali fosse sua vida real mesmo.”
Plataforma em que jogadores competem ou colaboram entre si conectados em rede, MMOs (massive multiplayer online games) como o “GTA RP”, “LoL”, “Valorant”, “Fortnite” e “Free Fire” são importantes palcos da música no mundo dos games. O caráter gregário e global desses títulos é propício para novidades da música pop que vão de apostas a jogadas de marketing polpudas.
“Games hoje são uma atividade do mainstream e a música é parte fundamental disso”, diz Karol Severin, analista sênior da consultoria britânica MIDiA Research. “A ideia não é mais vender um produto, mas, sim, gerar receita. Por exemplo: a presença de artistas como Travis Scott ou Ariana Grande em um game vai manter as pessoas por mais tempo naquele mundo, e talvez eles gastem mais um dólar ali.”
Assim como os dois popstars norte-americanos, o rapper Emicida também se apresentará no game Fortnite –o primeiro brasileiro a fazê-lo. Segundo Severin, shows desse tipo são só a ponta do iceberg. Artistas que jogam uma partida com fãs, turnês mundiais, itens digitais com autenticidade, os NFTs, parcerias de artistas locais com nomes internacionais e peças customizáveis para os avatares –a versão virtual do que foram as camisetas de banda– são outros exemplos. Tudo a seu custo.
“Quanto mais tempo da sua vida você passa no mundo digital, maior sua necessidade de criar uma identidade para sua persona ali. E há apenas dois lugares em que podemos fazer isso hoje: redes sociais e games”, afirma Severin. “Se você já gastou algum dinheiro no console ou no computador e no game, não é exagerado oferecer algo que custe um dólar nesse ambiente virtual. Numa plataforma como Spotify, porém, um dólar pode ser muito”.
A MIDiA Research divulgou em abril um levantamento feito em grandes mercados de games e música do mundo. De acordo com o relatório, pessoas que jogam mais de dez horas por semana passam duas vezes mais tempo escutando música do que o usuário médio de internet. Isto é, há mais chance de se encontrar fãs de música entre gamers do que fora desse grupo.
No Brasil a relação numérica se mantém e se reflete em outros parâmetros. Segundo a pesquisa, 7% dos usuários de internet do país gastam mais de R$ 10 com música, cifra que chega a 18% entre os gamers. “Eu escuto bastante música durante minhas lives, gosto de sertanejo, trap, funk”, diz a gamer Ale Maze. “Também dá para um amigo que está jogando comigo botar um som e a gente escuta a música juntos. E tem até fãs que criam músicas sobre os gamers.”
Os gráficos que cruzam game e música já tinham um histórico de crescimento quando a pandemia botou o mundo em confinamento. “O que mudou com o distanciamento social é que as pessoas criaram mais engajamento no mundo digital. Os games saíram vencedores nisso, e coisas mais criativas começaram a aparecer”, explica Severin.
O “K/DA” ratifica a ideia. A girl band ganhou mais popularidade em 2020, embora tenha sido criada em 2018. E ao contrário de projetos similares de animação, como o “Gorillaz”, o grupo foi inteiramente concebido no mundo dos games. Nada que deixe a desejar ao mundo real. No perfil da banda no Instagram, as cantoras aparecem em fotos e vídeos com voz e trejeitos de artistas de carne e osso.
“Hoje vejo que os games são, para grandes empresas, como comerciais de TV. Antes, tinham receio de investir nesse mundo, mas agora é diferente. A música tem muito a agregar ao mundo dos games e vice-versa”, diz o gamer Nobru, com voz e trejeitos de atletas como Neymar e Gabriel Medina.
Se o pop e as divisas astronômicas estão nos MMOs, experimentações e obras complexas encontram terreno fértil entre badalados títulos e jogos alternativos. É uma questão atrelada à forma desses games, uma vez que jogar em rede não está em sua essência. “Na prática de jogos online, a trilha fica em segundo plano porque a música não tem papel fundamental em termos narrativos”, explica Leonardo Porto Passos, pesquisador em música pelo Instituto de Artes da Unicamp.
Passos exemplifica a função narrativa da música nos games com o clássico encanador italiano e seu ajudante dinossauro: “Quando o Mario pega o Yoshi, a música se mantém a mesma, mas tem uma percussão nova ali que adiciona um certo tribalismo ao jogo. Da mesma maneira, um jogo hiper-realista sem som é algo que não encaixa.” Em poucas palavras, um game sem som é como um quadro sem moldura.
Adicionar ou retirar camadas de som de uma trilha é uma prática comum na indústria dos games até hoje. Nesse esquema, compositores criam pequenos ciclos de música que se repetem e mantêm a coerência na jornada do jogo independentemente de sua duração. Segundo Passos, um problema enfrentado por esse modelo é a fadiga sonora –aquela sensação de estar enjoado de uma mesma música que não para de tocar.
Quanto mais variada a música, menores são as chances que esse enjôo ocorra. No topo da pirâmide, entre os jogos de orçamento pesado (os chamados AAA), essa questão é solucionada com grandes orquestras e trilhas sonoras que parecem coisa de cinema.
Não é raro, por isso, encontrar nomes que joguem para os dois times: premiado compositor e responsável pela trilha da franquia “Tropa de Elite” e da série “Narcos”, o brasileiro Pedro Bromfman é nome requisitado entre os estúdios de games norte-americanos e acaba de assinar a trilha do jogo “Far Cry 5” –com produção estimada entre 80 e 130 milhões de dólares.
A história se complica quando o orçamento é menor porque complexificar o som exige operações sofisticadas entre compositores e programadores. Passos aponta os middlewares como um avanço importante da indústria nesse sentido. Grosso modo, esses softwares traduzem o som feito pelo músico em linhas de código que podem ser utilizadas pela equipe de desenvolvedores. “É o compositor como programador”, diz o especialista.
Outra evolução relevante entre som e game toca a interação homem-máquina. Há três eixos que vêm sendo explorados nesse campo. O primeiro é o áudio interativo, que varia conforme ações do jogador em um game: um ruído de explosão pode soar de maneiras diferentes em um ambiente aberto ou em um ambiente fechado, por exemplo. Há também o áudio adaptativo, em que o som se transforma a partir do contexto em que o jogador se encontra: ao entrar em um trecho complicado da fase, a música pode ficar mais tensa.
Por fim há o áudio ou música procedural. Nesse modelo, sistemas de inteligência artificial compõem a música do game com seu desenrolar seguindo regras pré-estabelecidas por programadores ou músicos. Um exemplo que se tornou conhecido por usar essa técnica é o “No Man’s Sky”. Este game oferece mais de 18 quintilhões de planetas para serem explorados pelos jogadores, cada um com características únicas. Tanto esse universo visual quanto sua música foram gerados por algoritmos.
Passos explica que a música procedural pode causar estranhamento porque ela é atonal, isto é, não segue as estruturas mais comuns da música que conhecemos no ocidente, seja no mundo pop ou na música de câmara. “Mas eu posso misturar isso com uma música tonal”, afirma o pesquisador. “Isso diminui esse distanciamento e ainda assim essa música vai ser diferente a cada vez que alguém joga aquele jogo.”
Não é mero acaso que todos esses termos soem como emprestados de vanguardas da música do século 20. Os games e plataformas do tipo hoje também cumprem papel de ferramentas de produção experimental. A interface “Pure Data”, por exemplo, permite que artistas façam música ao vivo digitando linhas de código e criando circuitos eletrônicos virtuais. De certa forma, os games estão para a música hoje como o cinema de ficção científica esteve para a música eletrônica nos anos 1960 e 1970.
Do futuro ao passado, música e jogo sempre se entrelaçaram e questiona-se mesmo quem surgiu primeiro. Há registros históricos de ambos os fenômenos em diversos povos, e tanto música quanto jogos podem ser encontrados também em outras espécies –do canto das baleias às brincadeiras de filhotinhos de cachorro. O MC Poze do Rodo, auto-intitulado “pitbull”, é daqueles que não largam mão nem do game nem da música. Perguntado se gosta de jogar no tempo livre, ele disse: “O pai é brabo no funk e no ‘Free Fire!'”