— Na rua, você fica mais exposto a tudo — define a copeira Sueli dos Santos Freitas, de 45 anos, que começou a vender meias no Centro do Rio há seis meses e ainda tenta se acostumar. — No início, até pegar amizade, é mais difícil. Tem que ter um bom relacionamento com um comerciante, para ele deixar você usar o banheiro, e com os colegas de rua, para cuidarem da sua banca. Se chove ou venta, não dá para trabalhar. E ainda tem os guardas municipais. Quando alguém grita que eles estão vindo, é preciso recolher tudo rápido e correr com a mesa na cabeça.
No auge da crise, em 2015, Sueli foi demitida da empresa prestadora de serviços onde trabalhou por cinco anos. Era copeira em um hospital. Não conseguiu mais uma nova vaga. Em maio de 2016, foi a vez de o marido perder o emprego de porteiro depois de ter trabalhado 16 anos no mesmo condomínio. O filho, bombeiro civil, está desempregado desde o fim dos Jogos Olímpicos. O jeito foi a família toda ir para o mesmo quarteirão do Centro vender meias.
— Trabalho desde os 12 anos e, depois dos 18, sempre com carteira assinada. Estou na rua agora por necessidade. Para poder levar o pão de cada dia para casa. Mas, se Deus quiser, vou sair daqui — diz Sueli, que não deixou de entregar currículo nas agências das redondezas nem parou de contribuir com o INSS, preocupada em contar tempo para a aposentadoria.
‘UMA TÁBUA DE SALVAÇÃO’
Para Cimar Azeredo, coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, o crescimento dos ambulantes é um indicativo de que a recuperação econômica ainda é fraca:
— Essas pessoas foram lançadas na rua contra a vontade. Ninguém sonha em ser ambulante. Mas, na atual conjuntura, encontram na informalidade uma tábua de salvação.
Em um largo próximo à banca de Sueli, um estudante vende cuecas para pagar a faculdade. Ele está no 4° período de Direito e pede para não se identificar. Mas conta que trabalhou por oito anos como vendedor de uma grande rede varejista até ser demitido no ano passado. Desde então, não conseguiu outro trabalho formal. Allan Felippe Sousa da Silva, 26, também perdeu o emprego na construção civil no ano passado. Há um ano e três meses vendendo óculos de sol a R$ 10 para brasileiros e US$ 10 para os turistas estrangeiros nas ruas, ele ganha quase o dobro do salário que tinha quando estava empregado. Mas não vê a hora de sair da rua:
Apesar de muitos camelôs contarem que o que ganham com as vendas, sem descontos no contracheque, pode superar o salário que tinham no mercado formal, os dados do IBGE mostram que a renda média dos ambulantes não chega à metade da média de todos os trabalhadores. Com mais gente trabalhando nas ruas, o rendimento desse grupo caiu. No último trimestre do ano passado, dado mais recente do IBGE, somava R$ 958. Há três anos, era de R$ 996. No Estado do Rio, ainda que maior que a média nacional, também houve queda: de R$ 1.163 para R$ 1.145, no mesmo período.
O desemprego provocado pela crise também levou para a informalidade trabalhadores com qualificação. Formada em Administração, Marianne Silva, 26, trabalhou por cinco anos no setor administrativo de uma fabricante de doces. Há três, ela vende quentinhas na rua.
— Eu e muitos colegas fomos demitidos juntos. Na época, minha mãe já vendia comida na rua e estava cansada. Como não consegui mais emprego, resolvi ajudá-la e aqui fiquei — conta a jovem.
A atual explosão de ambulantes não é exclusividade da atual crise, que ainda desemprega 13,7 milhões de brasileiros. É um movimento recorrente no país em tempos de recessão, como nos anos 1980 e 1990, observa a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro Machado, que estuda o tema há 20 anos:
— No imaginário brasileiro, isso não é visto como um trabalho, mas hoje os ambulantes estão salvando o país de uma crise que poderia ser ainda maior.
Para Benedito Roberto Barbosa, advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, de São Paulo, a falta de regulamentação de territórios próprios para ambulantes está por trás do caos urbano associado a esta atividade:
— O poder público, junto da sociedade, precisa definir que tipo de comércio é possível em cada região. Sem controle sobre o território, há infiltração de pessoas indevidas, e a informalidade se generaliza. Aumentam conflitos com a polícia, comerciantes e pedestres.
‘PERDA DE CAPITAL HUMANO PODE SER IRREVERSÍVEL’
Economista da FGV, Fernando Veloso, alerta para os impactos negativos do aumento da informalidade na produtividade e na retomada da economia
Quais são os impactos negativos do aumento da informalidade na economia?
Uma maior informalidade diminui a velocidade da recuperação econômica, pois a produtividade do setor formal é cerca de quatro vezes maior que a do informal. Os negócios informais usam menos capital, menos tecnologia, empregam trabalhadores com menor escolaridade e qualificação e não têm acesso a crédito, ficando impossibilitados de crescer. E os ambulantes estão no extremo inferior da informalidade.
Sim, pois você está deslocando trabalhadores para o setor menos produtivo de toda a cadeia. O fato de pessoas que tinham carteira terem ido para a rua mostra que a informalidade não só prejudica o crescimento como a recuperação da própria produtividade do trabalho. O ambulante é o trabalhador menos produtivo de todo o mercado de trabalho.
Quais são os impactos para esse trabalhador?
Numa empresa, a tendência é que a produtividade do trabalhador cresça em razão da vivência naquele ambiente, das experiências que ele vai acumulando e de seu desenvolvimento dentro daquele ambiente. Ao partir para a informalidade, há uma perda de capital humano.
Essa perda pode ser recuperada?
Quanto mais tempo esse trabalhador passar na rua, mais persistente será essa perda, mais as habilidades dele ficarão defasadas. Talvez, quando ele voltar a ter um emprego com carteira, não consiga mais acompanhar as mudanças que estão acontecendo em termos de tecnologia e robótica, por exemplo. É uma perda que pode ser irreversível.