Franquia do crime: 2 milhões de pessoas no RJ estão em áreas sob influência de milícias

Quadrilhas estão em 37 bairros e 165 favelas da Região Metropolitana; diferentemente da década passada, quando estavam limitadas a 161 comunidades. Área de atuação dos milicianos equivale a 1/4 da cidade do Rio.

Franquia do crime: 2 milhões de pessoas no RJ estão em áreas sob influência de milícias

s milícias estão, atualmente, em 11 municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. As áreas de influência desses grupos criminosos somam 348 km², o equivalente a um quarto do tamanho da capital. É um conjunto de territórios em que vivem 2 milhões de pessoas que, no dia a dia, são coagidas a usar o transporte, o botijão de gás; a pagar por segurança e pelo sinal de TV; além de consumir água e os alimentos da cesta básica dessas quadrilhas.

A partir desta quarta-feira (14), o G1 publica a série Franquia do Crime, que por meio de análise de inquéritos, denúncias e processos, além de entrevistas com autoridades e moradores de comunidades, vai mostrar o crescimento dessas quadrilhas na Região Metropolitana do RJ.

Os dados sobre o alcance desses grupos foram obtidos por um levantamento exclusivo com base no cruzamento de informações do Ministério Público estadual, da Polícia Civil, da Secretaria de Estado de Segurança (Seseg) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em 2008, essas quadrilhas estavam em 161 favelas na Região Metropolitana. Passados dez anos, os milicianos expandiram sua atuação para bairros inteiros, com atuação em 37 deles, além de estar em mais 165 favelas isoladas.

Franquias do crime: infográfico mostra expansão das milícias no RJ (Foto: Igor Estrella/Editoria de Arte G1)Franquias do crime: infográfico mostra expansão das milícias no RJ (Foto: Igor Estrella/Editoria de Arte G1)

Franquias do crime: infográfico mostra expansão das milícias no RJ (Foto: Igor Estrella/Editoria de Arte G1)

O avanço acontece principalmente na Zona Oeste do Rio, Baixada Fluminense e no município de Itaguaí, a 69 quilômetros da capital, sempre no rastro das lacunas deixadas pelo poder público, que não oferece serviços básicos como transporte e segurança nas regiões isoladas dos municípios. Para se estabelecer em novas regiões, os criminosos contam com o apoio de grupos anteriores formados na cidade do Rio.

Os milicianos da capital criaram o que os promotores do MP chamam de “franquias” ao definirem regras, tais como:

  • Política de não-agressão entre os grupos
  • Uso, inicialmente, do nome anterior da quadrilha
  • Envio de integrantes a essas regiões
  • Ações de tomada de territórios com fardas das polícias Civil e Militar
  • Pagamento à matriz de percentual dos lucros obtidos pela nova quadrilha

“Eles estão se expandindo por meio de acordos nos municípios limítrofes, com operações que parecem muito com uma franquia”, diz o promotor do Ministério Público do Rio (MP-RJ) Jorge Luís Furquim.

“A partir de informações ou de relações com pessoas desses municípios, eles chegam fazendo acordos com moradores, grupos de milicianos ou grupos de extermínio. Emprestam o ‘know-how’, deixam que se use o nome intimidador”, afirma. “Agem fardados com roupas da Polícia Civil ou Militar nas ações de tomada de territórios.”

Furquim explica que os grupos têm “um ponto em comum”, que é o “franqueador”. Segundo ele, a antiga Liga da Justiça (historicamente dominante na Zona Oeste) dá as cartas, fazendo “determinações sobre funções e brigas internas dessas células que eles criaram”. “Foi isso o que eles fizeram em Itaguaí e em Seropédica. São dois grupos diferentes”, afirma o promotor.

Coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), o promotor Daniel Braz reforça a análise de Furquim sobre o uso das “marcas” indicando que as milícias passaram a importar a forma de atuar de grupos mais experientes.

“Algumas milícias têm a marca. Às vezes, um grupo de uma outra localidade importa aquele símbolo para se instalar ali. Por exemplo: usa o nome da Liga da Justiça, isso em acordo do grupo, e paga por isso. É tipo uma franquia”, diz Braz.

 Mudança no perfil das milícias

“Isso não me surpreende. A situação econômica, crítica do país e do estado, nos últimos anos, resultou numa falta de investimentos do poder público em várias áreas e assim esses grupos se aproveitaram disso”, afirma o delegado Alexandre Herdy, da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco).

Inicialmente formadas por policiais civis e militares, bombeiros e agentes penitenciários, além de alguns moradores, as milícias mudaram o perfil à medida que se expandiam. Atualmente, policiais, quando aparecem, estão assessorando a prática criminosa. O combate e, consequentemente, a prisão de antigos chefes levou as quadrilhas a deixarem a chefia desses grupos com civis e, em alguns casos, até traficantes.

“A característica deles de ex-agentes públicos já foi afastada. Eles [os milicianos] estão trazendo os soldados do tráfico para o seu lado e, consequentemente, você tem uma ação da milícia muito mais violenta porque, hoje, estamos falando de milícia e tráfico, tudo igual”, explica a promotora Carmem Eliza Bastos, também do Gaeco.

A primeira autoridade a alertar para a existência desses grupos paramilitares foi o ex-prefeito Cesar Maia, hoje vereador. Por e-mail, Maia acrescenta que, atualmente, mudanças na composição dos grupos estão possibilitando alianças entre milicianos e traficantes.

“O ponto de partida em Rio das Pedras (em 1998) se afirmava contra o tráfico de drogas. Com a expansão isso foi se diluindo. Hoje há casos graves que somam tráfico e milícia. Essa mescla surpreendeu. Ocorreu assim no México”, diz Maia.

E já existem exemplos dessa equação tráfico e milícia. Criminosos como Carlos Alexandre Braga, o Carlinhos Três Pontes, morto numa troca de tiros com a polícia, no ano passado; ou Leandro de Oliveira Silva, conhecido como Teco, preso na segunda-feira (5), são alguns deles. “A mudança de perfil da milícia é cada vez mais nítida, pois prendemos com frequência milicianos que já tiveram atuação no tráfico de drogas”, afirmou o delegado Herdy.

Para ocupar territórios, há dez anos, esses grupos se escondiam atrás de um discurso de luta contra o tráfico de drogas. Traficantes e familiares eram mortos ou expulsos das favelas. O tráfico, internamente, era proibido. O tempo levou milicianos a serem mais tolerantes com os traficantes, mas as autoridades ainda consideram pequena a adesão à venda de drogas em áreas dominadas por essas quadrilhas.

“Na verdade, por terem agentes públicos nestes grupos, é evidente que há um nível de conivência – maior ou menor – dependendo da instituição, mas são agentes públicos comandando o crime organizado em diversos territórios do Rio de Janeiro”, afirma o deputado estadual Marcelo Freixo (PSol), que presidiu a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), em 2008..

“Há uma conivência grande quando não se coloca a corregedoria ou se faz um mapeamento sobre o crime que mais cresce”, afirma Marcelo Freixo.

Crescimento das quadrilhas

Em 1997, alguns policiais e moradores criaram um grupo na comunidade de Rio das Pedras, na Zona Oeste, com a alegação de impedir a entrada de traficantes e dar segurança aos comerciantes.

Onze anos mais tarde, em 2008, um relatório da Subsecretaria de Inteligência da Seseg listou 171 comunidades dominadas por milicianos, sendo 161 na Região Metropolitana do RJ. A constatação se restringia a favelas em sete municípios da Região Metropolitana. O documento foi apresentado à Comissão Parlamentar de Inquéritos (CPI) das Milícias, da Assembleia Legislativa do RJ.

Na listagem, algumas localidades, principalmente, na Baixada Fluminense apareciam relatadas no documento como bairros, mas se tratava de comunidades. “A ação sobre bairros inteiros era limitada a Campo Grande, mas não como hoje, que chegou a outras regiões”, diz Freixo.

Uma década depois, conforme mostra o levantamento do G1, a ação de milicianos está presente no Rio e em 11 cidades entorno da capital. Isso significa que esses grupos exercem influência sobre cerca de 609 mil domicílios. E todo o lucro obtido vem da exploração de serviços. O que se limitava às favelas, com nomes, símbolos e apoio político, ganhou as ruas.

 Vans exploradas por esses grupos atravessam bairros e até municípios. O combate às organizações levou, na última década, 1.403 pessoas para a cadeia. Mas de 1997 até 2006, apenas seis integrantes destes grupos haviam sido presos pelas polícias estaduais.

Baixada, a nova fronteira

“A violência está chegando numa dimensão que a gente nem tem ideia da situação. Está piorando, não está melhorando. Os matadores são substituídos por milicianos, que são muito organizados. Eles ampliam para outros negócios. A milícia só não vende o ar porque o ar não é negociável”, resume o antropólogo José Cláudio Alves, autor de livros sobre a violência no estado.

A dimensão citada por Alves é expressa em números: nove municípios, 43 localidades. Essa é a abrangência das atividades de milícias na Baixada Fluminense, que tem 13 municípios. Já há grupos de milicianos em: Belford Roxo, Duque de Caxias, Itaguaí, Mesquita, Nova Iguaçu, Queimados, São João de Meriti, Seropédica e Magé.

Os dados foram obtidos junto ao núcleo de inteligência da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF), documentos do Ministério Público e investigações da Polícia Civil. Uma das vertentes de expansão das milícias saiu de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio, berço dessas organizações, e partiu em direção à Baixada.

A ramificação fica explícita no depoimento de um dos principais milicianos que atuava na região e foi preso em 2016. O homem contou à polícia que a Liga da Justiça, milícia que teve origem nos bairros de Santa Cruz, Campo Grande, Cosmos, Inhoaíba e Paciência, “estendeu sua abrangência territorial para outros municípios fluminenses, em especial Nova Iguaçu, Seropédica e Itaguaí”.

O criminoso, que teve negado acordo de delação com o Ministério Público, disse que essa “franquia” do grupo um dia chefiado por Ricardo Teixeira da Cruz, o Batman, pratica “uma série de homicídios” na Baixada. Ele diz que muitos crimes envolvem a ocultação de cadáveres, ameaças de morte, extorsões financeiras a comerciantes e empresários, esbulho de imóveis, além de uso de veículos clonados.

 Entre as principais atividades econômicas da milícia na Baixada, estão:
  • Segurança privada
  • Extração clandestina de areia e saibro (Itaguaí e Seropédica)
  • Exploração de transporte alternativo
  • Comércio e venda de água mineral e botijões de gás
  • Venda de cestas básicas
  • Comércio ilegal de sinal de TV a cabo

Intervenção federal longe das milícias

Desde que foi decretada a intervenção federal no Rio, os militares ainda não realizaram nenhuma ação em uma área sob influência dos milicianos. Sob a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), estabelecida em junho de 2017, o Exército realizou 20 operações em comunidades. Mas, novamente, nenhuma em área com a atuação de milicianos. Perguntado se as forças de intervenção vão atuar nesses locais, Pezão disse: “Eles vão entrar em todos os lugares”.

O Gabinete de Intervenção Federal (GIF) comunicou, em nota, que a prioridade institucional é “trabalhar para recuperar a capacidade operativa dos órgãos de segurança pública para diminuir os índices de criminalidade”.

Sobre as milícias, o GIF disse que “a investigação continuará a cargo das áreas de inteligência das polícias Civil e Militar e da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e de Inquéritos Especiais (Draco/IE), unidade especializada de referência”.

Como foi feito o levantamento

As áreas sob influência de milícias foram computadas a partir de informações da Polícia Civil, Secretaria de Segurança Pública e Ministério Público estadual.

Os dados foram checados com diferentes fontes. Foram considerados os locais em que há influência da milícia sobre a população em uma ou mais atividades, como, por exemplo: cobrança de segurança privada, transporte, venda de gás e água, etc.

A população e o número de domicílios dos territórios foram calculados usando a grade estatística do IBGE, que permite obter essas informações com precisão de 0,04 km². As áreas com tamanho inferior foram desconsideradas para evitar distorções.

O levantamento retrata as informações mais atualizadas dos órgãos policiais e da Justiça. Como mostra a reportagem, a atuação dos grupos criminosos é dinâmica e as áreas mudam rapidamente ao longo do tempo.

Por Felipe Grandin, Henrique Coelho, Marco Antônio Martins e Nicolás Satriano, G1 Rio

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