Pesquisa de ONG com mil moradores indicou que intervenção não teve avaliação positiva. Especialistas criticam ocupações permanentes em favelas.
Novo secretário de Segurança do Rio comandou 3 meses de ocupação da Maré; intervenção baixou mortes, mas moradores relatam receio.
Por Henrique Coelho, G1 Rio
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Homens do Exército ocupam as entradas de comunidades do conjunto de favelas da Maré em 2014. Em um dos acessos à Vila do João, os militares revistam motoristas neste domingo. (Foto: Janaína Carvalho/G1)
O novo secretário de Segurança do Rio de Janeiro, general Richard Nunes, está entre os oficiais que comandaram a ocupação da Maré por forças militares, que durou um ano e dois meses. A escolha de Nunes foi comunicada ao governador Luiz Fernando Pezão na última semana.
Batizada como Operação São Francisco, a ação das tropas no complexo de 140 mil habitantes foi realizada entre 5 de abril de 2014 e 30 de junho de 2015. O Exército afirma que a ação reduziu o número de mortes. Moradores descrevem como “traumática” a relação com as tropas.
Os militares, geralmente, ocupavam as comunidade por um curto período de tempo, até que fosse criada a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). No caso da Maré, como acabaram os recursos para instalação da UPP, os militares permaneceram na comunidade.
A medida concedeu poder de polícia às tropas, que foram autorizando a fazer patrulhamentos, revistas, vistorias e prisões em flagrante – o que não podiam fazer em outras ocupações. Das 16 comunidades da Maré, apenas a comunidade Marcílio Dias não foi ocupada pelo Exército. O complexo tem uma área de cerca de 10 km².
Richard Nunes comandou a operação na Maré por três meses – de dezembro de 2014 até fevereiro de 2015. O general é bacharel em direito e passou por vários comandos no Exército. Atualmente, estava à frente da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME).
Após o fim da ocupação na Maré, o Exército afirmou que houve redução da taxa de homicídios na região: de 21,29 mortes por 100 mil habitantes, para 5,33 mortes. O G1 conversou com moradores e pessoas que trabalham na região, que reagiram com apreensão. Eles lembraram de casos de mortos e feridos entre militares e civis.
“Estávamos comentando justamente na escola sobre isso: o medo de o Exército voltar à Maré. Há insegurança e receio pela integridade física dos alunos e professores”, relatou Susana Gutierrez, diretora do Sindicato dos Profissionais de Educação (Sepe) e professora na Maré há 18 anos.
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General Richard Nunes (primeiro à direita) será o secretário de Segurança do Rio (Foto: Divulgação/Exército)
Baleado em ‘check point’
Uma semana depois da ocupação dos militares na Maré, as primeirasoperações com mortos ou feridos começaram a ocorrer nas favelas da região. Um dos casos mais noticiados foi o de Vitor Santiago, então com 28 anos, que teve a perna amputada depois de ser baleado por soldados do Exército.
Em depoimento, o cabo Diego Neitzke disse que realizava “check-point” em uma rua da Salsa e Merengue quando um carro não obedeceu à ordem de parada, mesmo após terem sido feitos disparos com bala de borracha. Em seguida, o militar conta no relato que disparou quatro tiros de fuzil contra o veículo. Dois atingiram Vitor na perna e no tórax, destruindo parte do pulmão.
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Vitor teve a perna amputada e perdeu parte do pulmão ao ser atingido por tiros disparados por um cabo do Exército na Salsa e Merengue, em 2015 (Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal)
Vitor foi baleado quando estava entrando de carro na comunidade Salsa e Merengue, no Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio.
Dentro do carro, além de Vitor, estavam Pablo Inácio da Rocha Filho, sargento da Aeronáutica, Adriano da Silva Bezerra, que dirigia o carro, e os irmãos Jefferson Lima Da Silva e Allan da Silva. Todos eles questionam a versão do Exército. Segundo eles, o carro foi alvejado depois de saírem da revista em direção à casa de Vitor.
“Obrigavam a gente a sair do carro, isso com o Vitor ferido lá dentro”, relatou Pablo Inácio, o sargento da Aeronáutica de 27 anos que estava no carro.
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Carro onde estavam amigos na Maré foi atingido por tiros de fuzil. Cabo do Exército disse em depoimento que grupo furou bloqueio; amigos contestaram versão (Foto: Luciano Borges/Arquivo Pessoal)
Vitor ficou pelo menos cinco dias em coma induzido no hospital. A mãe dele, Irone Santiago, tem medo que a situação que aconteceu com o filho se repita com novas atuações das Forças Armadas em comunidades no Rio.
“Para mim, isso é uma ditadura. Você acha que os militares do Exército vão fazer o quê? E só vai piorar para a gente. Por que a gente não tem o direito de viver? Eu chorei muito ao saber [da intervenção]”, diz ela, citando em seguida o caso do jovem Jeremias, de 13 anos, morto recentemente após operação na comunidade. “Todo dia é um Vitor novo, é um Jeremias novo. Tem que parar”.
A família entrou na Justiça e conseguiu, em 2016, uma antecipação de tutela coletiva: o Exército entrega remédios e insumos para o tratamento de Vitor, como fraldas, adesivos para tratamento de escaras na pele, sonda e cadeiras de rodas quando são necessárias. O processo na 5ª Vara Federal, no entanto, continua tramitando.
“A gente conseguiu provar que ele foi vítima do Estado, da União, o cabo assume que atirou e assume a responsabilidade, mas eu continuo com o processo. Eu estou esperando a determinação do juiz. Quanto tempo um pai, uma mãe, precisa esperar por justiça? Já são três anos, quanto tempo eu vou ter que esperar mais?”, questionou a mãe de Vitor.
Professores ouvidos pelo G1, que não quiseram se identificar, fizeram diversos relatos de abusos cometidos por soldados das Forças Armadas, dentro e fora das unidades educacionais: exigências para entrar em pontos considerados estratégicos dentro de colégios com armas destravadas estariam entre elas.
Até a última atualização desta reportagem, o Comando Militar do Leste não respondeu aos questionamentos do G1 sobre os supostos abusos mencionados por moradores e professores.
Militar morto e balanço da operação
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Cabo do Exército Michel Mikami era de Vinhedo (SP) e morreu após ser baleado na cabeça na Maré (Foto: Reprodução/Facebook)
Em novembro de 2014, um cabo do Exército foi morto após ser baleado na cabeça durante atuação na comunidade. Michel Augusto Mikami tinha 21 anos e era de Vinhedo, no interior de São Paulo, e foi o primeiro militar das Forças Armadas morto no processo de pacificação desde 2008. Ao todo, no período das operações na região, 27 militares foram feridos.
O balanço divulgado após o fim da Operação São Francisco mostra que, à época, as tropas realizaram 83 mil ações, 674 prisões e 255 apreensões de menores. Foram feitas ainda 1.356 apreensões de armas, drogas, munições, veículos e motos.
Outro dado do balanço foi a redução da taxa de homicídios na Maré. Em abril de 2014, a taxa anual de homicídios na área de ocupação era de 21,29 mortes por 100 mil habitantes, segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Estado (ISP). Esse número caiu para 5,33 mortes após a ocupação das tropas, de acordo com dados do mesmo instituto.
Gastos da operação
Os gastos na Operação São Francisco, de acordo com dados do Diário Oficial, foram de R$1,7 milhão por dia, R$ 51 milhões por mês, podendo ter chegado a mais de R$ 700 milhões durante os 14 meses de ocupação militar na Maré de gastos da União.
O coronel da reserva do Exército Fernando Montenegro, um dos comandantes da força de ocupação do Complexo do Alemão e hoje especialista em segurança, diz que a negativa ao pedido de mandados de busca e apreensão coletivos impossibilitou que a ocupação tivesse um início tão positivo na identificação de esconderijos de armas, drogas e criminosos.
“Na Maré, não tinha mandado, foi avisado com bastante tempo de antecedência, e fez bastante diferença no resultado da operação”, avaliou. “A ocupação do Alemão deu muito certo. Não posso dizer a mesma coisa da Maré”, afirmou.
Ocupações na intervenção
Montenegro, no entanto, não acredita que haja grandes ocupações na Maré e no Alemão em um primeiro momento na intervenção na segurança do Rio. “Não se pode esperar que haja ocupações nas favelas como ocorreu no Alemão e na Maré”.
Fernando Veloso, hoje especialista em Segurança e na época chefe de Polícia Civil, concorda que talvez o melhor seja não haver ocupações permanentes em favelas.
“A experiência não foi positiva. O custo é muito elevado, a dominação de território com efetivo permanente é arriscada e o efeito, curto. A tropa começa a ficar fragilizada, pode ser alvo de ataques, pode se corromper, e em pouco tempo pode ser ludibriada pelo marginal que conhece mais o terreno”, explicou Veloso.
A pouca interlocução das polícias com o comando do Exército, segundo Veloso, chegou a criar embaraços com a Polícia Civil.
“Não havia um alinhamento. Os resultados não foram expressivos, em razão dos recursos que foram alocados para ali, e aquela época ainda teve um problema maior: a integração não foi muito bem desenvolvida. Ações da polícia que precisavam ter andamento para investigação demoravam a ser implementadas”, disse.
Confrontos continuam
A região da Maré continua sendo alvo de operações constantes das polícias civil e militar. De acordo com dados do Boletim de Segurança Pública da Maré em 2017, os confrontos, tanto os provocados por intervenção policial quanto por grupos armados criminosos que dominam a região, resultaram em 42 homicídios, 57 pessoas feridas, 35 dias de escolas fechadas e 45 dias de unidades de saúde sem funcionamento.
Foram 41 confrontos armados durante operações policiais e 41 durante confrontos armados entre quadrilhas de traficantes rivais na Maré. As favelas com mais homicídios foram a Baixa do Sapateiro e o Parque União, com nove homicídios cada uma.
O impacto também afetou as escolas. Segundo dados da Secretaria Municipal de Educação, foram 35 dias sem aulas na Maré, com 8,5 mil alunos afetados no ano passado. Em dias de tiroteios, em vários momentos alunos se jogaram no chão para se proteger.
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Foto de dezembro de 2017 mostra crianças deitadas no chão de creche para se proteger durante tiroteio na Maré (Foto: Reprodução/Redes sociais)
O número de dias sem aula pode ser, inclusive, muito maior que os divulgados oficialmente.”Esses são os dias que as escolas não abrem. E os dias em que o tiroteio começa no meio da aula? Você está no local de ensino, mas não consegue dar aula. Não somos especialistas, mas tentamos dar nosso jeito: levamos para o corredor, tiramos de perto das janelas”, relatou um professor da rede municipal na Maré.
‘Território de exceção’
A diretora da ONG Redes da Maré, Eliana Sousa, coordenou entre fevereiro e setembro de 2015 uma pesquisa chamada “Percepção de moradores sobre a ocupação das Forças Armadas na Maré”. Foram ouvidos mil moradores das 15 comunidades ocupadas. Para ela, a intervenção federal é uma decisão muito questionável.
“Essa lógica é equivocada, de que a gente está em uma guerra e essa violência bélica dentro das favelas justifica a violência que acontece dentro das comunidades. Do ponto de vista da funcionalidade, o que a gente percebe com a pesquisa a experiência foi muito traumática na Maré, para quem mora e para o próprio Exército. No final, havia uma hostilidade dos dois lados”, explica ela, que prevê que possa haver tratamento distintos para moradores de diferentes áreas da cidade.
“Eu não tenho dúvida de que nas ruas da Zona Sul, a sensação de segurança vai mudar. A questão é que isso não é uma ação para enfrentar os problemas que temos como Estado. É uma decisão muito questionável”, avalia.
De acordo com a pesquisa, 21,6% dos ouvidos relataram ter visto confronto de soldados com facções criminosas. Outros 34% revelaram ter sofrido revistas, com maioria de idade entre 18 e 29 anos.
A forma de abordagem foi indicada como a principal violação reclamada pelos moradores da Maré, com 70%. Foram relatados com frequência ainda agressões verbais por 46% dos entrevistados e agressões físicas por 31%.
Segundo estimativa a partir dos resultados da pesquisa, apenas 13% dos moradores que se sentiram com direitos violados por integrantes das tropas do Exército fizeram algum tipo de denúncia ou registro. Para Eliana, é preciso desconstruir esse papel assumido pelas forças de segurança e o Exército, hostil e de enfrentamento, nas comunidades.
“Isso é um processo histórico. De uma maneira geral, as pessoas que moram em favelas não vivem uma experiência de viver como cidadão, atingidos pelos serviços de segurança. Quando eles vão para a favela, eles vão para o enfrentamento. Se suspendem os direitos que estão estabelecidos na cidade como um todo, e se cria ali uma situação de exceção, um território de exceção”, afirma.
“Os moradores nunca viveram algo diferente. Não existe uma separação entre quem participa de uma atividade ilícita e quem é o morador comum. O que precisa se fazer para que os moradores de favela tenham os mesmos direitos do cidadão de toda a cidade?”, questionou Eliana.
Geografia do crime na Maré
De acordo com a pesquisa, nas comunidades da Maré, existe a presença de quatro grupos criminosos: três facções de tráfico de drogas e milícia. As informações foram confirmadas por policiais e agentes de segurança que atuam na região.
- Parque Maré, Parque Rubens Vaz, Parque União e Nova Holanda: domínio do tráfico de drogas
- Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro, Nova Maré e Conjunto Bento Ribeiro Dantas: domínio do tráfico de drogas
- Vila dos Pinheiros, Vila do João, Conjunto Pinheiros, Salsa e Merengue e Conjunto Esperança: domínio do tráfico de drogas
- Parque Roquete Pinto e Praia de Ramos (bem como Marcílio Dias): domínio de milícia
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Soldados do Exército na comunidade da Maré na primeira semana após a ocupação em 2014 (Foto: Carlos Moraes/Agência Estadão Conteúdo)
G1