Barco lotado, desembarque negado e encrenca com a guarda costeira: a rotina do resgate de refugiados no Mar Mediterrâneo
Por Ana Carolina Moreno, G1
Hoje, é o único do grupo que trabalha com isso o ano inteiro: no verão sul-americano, evitando o afogamento de turistas na praia de Santa Clara del Mar, perto de Mar del Plata. No verão europeu, salvando refugiados que escapam da Líbia e da Turquia nos barcos da ONG catalã Proactiva.
Neste mês, ele passou quatro meses na Grécia coordenando a missão em Lesbos, entre maio e julho, e de meados de agosto até o último dia 15. A ONG chegou ali em setembro de 2015, apenas com socorristas que faziam resgates a nado, quando dezenas de botes com refugiados chegavam todos os dias. As equipes da ONG trabalharam primeiro com motos aquáticas e depois com um barco próprio, para patrulhar o Mar Egeu e ajudar na chegada dos homens, mulheres e crianças em busca de asilo na Europa.
Entre julho e agosto deste ano, ele também passou um mês no Mediterrâneo Central, como ficou conhecida a região de busca e resgate de refugiados nas muitas milhas náuticas de águas internacionais que separam a Líbia e as ilhas de Lampedusa e Sicília, na Itália, ou a Ilha de Malta.
O socorrista integrou duas missões a bordo do Golfo Azzurro, um dos barcos que a organização mantém na zona desde 2016, quando a Grécia fechou a fronteira com a antiga república iugoslava da Macedônia, e o fluxo de refugiados voltou a se concentrar na costa da Líbia.
Taxa de mortalidade da travessia dobrou
Cruzar o Mar Mediterrâneo sem passaporte ou visto é uma viagem que cada vez menos refugiados têm feito, graças aos esforços dos países europeus de endurecer as condições de aceitação de pedidos de asilo e remunerar a Turquia e a Líbia para impedir as viagens marítimas. Mas, também por isso, a empreitada se tornou cada vez mais perigosa desde o ano passado. Entre 1º de janeiro e 1º de outubro de 2017, dez pessoas morreram por dia, em média, tentando escapar da Líbia e pisar em solo europeu, para pedir refúgio, segundo a Organização Internacional de Migração (OIM).
Até então, 128.863 haviam feito a travessia, mas 2.658 perderam a vida nessa tentativa. A taxa de mortalidade dobrou em comparação com o mesmo período de 2016, quando houve 334.554 chegadas e 4.039 mortes.
Os crescentes conflitos entre as ONGs e as autoridades líbias fizeram com que, em agosto, três organizações anunciassem a suspensão de suas atividades na região: Médicos sem Fronteiras, Save the Children e a entidade alemã Sea Eye.
“Estão colocando muitas travas no trabalho das ONGs. Não podemos navegar tranquilamente e resgatar barcos. Há muita perseguição. Agora estão tentando frear a passagem dos refugiados na Líbia. A Europa está treinando a Guarda Costeira da Líbia, estão negociando com um governo que não é um governo”, afirma Kosoblik.
“Seguimos trabalhando porque não vamos abandonar a causa. Mas realmente fazem de tudo para que a abandonemos, essa é a realidade.”
Retenção em alto-mar
Um dos episódios mais críticos que o socorrista argentino viveu a bordo do Golfo Azzurro aconteceu em 15 de agosto deste ano, quando o barco e toda a sua tripulação foi retida pela Guarda Costeira da Líbia durante cerca de duas horas. De acordo com o argentino, o conflito começou depois que a tripulação do barco da organização Defend Europe, um grupo de extrema-direita que decidiu impedir o resgate de refugiados pelas ONGs no Mediterrâneo, acionou a Guarda Costeira líbia.
“Começamos a fazer um treinamento, uma simulação”, relembra Kosoblik. Nestes treinos, os socorristas embarcam nos dois barcos menores que rebocam atrás do barco principal, e com os quais realizam os resgates junto aos barcos de refugiados. “Neste momento, eles [o barco da Defend Europe] estavam um pouco longe de nós, observando, e chamaram a Guarda Costeira líbia, que veio muito rápido, justo quando estávamos treinando. Vieram a toda velocidade.”
Segundo o salva-vidas, as autoridades alegaram que o barco da Proactiva estava dentro das águas líbias, o que a ONG nega. Matías explica que, entre a costa da Líbia e as primeiras 12 milhas náuticas, considera-se que aquelas águas são líbias. Entre 12 e 24 milhas náuticas, a Líbia decidiu exercer seu controle. De acordo com a Proactiva, o Golfo Azzurro se encontrava a 27 milhas náuticas das terras líbias.
“O que fizemos foi fazer uma manobra e guardar as embarcações de resgate. O capitão, o marinheiro de ponte e o mecânico ficaram na ponte do barco e quase toda a tripulação foi para a zona segura do barco, que é a enfermaria. Neste momento, o capitão do barco entrou em contato com as autoridades da Itália e da Otan [a Organização do Tratado do Atlântico Norte] para tentar solucionar o problema. Os guardas insistiam que a tínhamos que mudar nosso rumo e seguir para Trípoli [a capital da Líbia].”
Kosoblik diz que os líbios ainda fizeram pedidos para subir a bordo do barco da ONG, mas não conseguiram.
“O que estavam fazendo é um sequestro. Por duas horas não podíamos mover por nossa própria vontade, porque eles estavam nos dando ordens e se não as acatávamos, iam atirar contra nós. E se você escuta pelo rádio como nos tratavam, realmente acreditaria que iam disparar.”
Segundo a agência de notícias Reuters, que tinha um de seus fotógrafos a bordo do Golfo Azzurro naquele dia, a Líbia transmitiu ameaças pelo rádio. “Vocês estão navegando em nossas águas há meses e conduzindo atividades que estão causando problemas para a soberania do Estado líbio. Por isso eu exijo que altere o seu curso rumo ao porto de Trípoli. Se vocês não obedecerem as ordens agora mesmo… Vocês virarão um alvo”, disse a mensagem. O porta-voz da Guarda Costeira da Líbia não respondeu a um pedido de comentário sobre o incidente feito pela agência Reuters.
Quase 500 refugiados de uma vez
“A verdade é que esse é um trabalho muito estressante, porque demanda muito tempo. Mas também é muito satisfatório, pela gratidão que demonstram os refugiados na hora em que são resgatados”, resume ele.
Em seu primeiro dia de trabalho no Mediterrâneo Central, ele recebeu essa gratidão vezes 494, o número de refugiados que foi resgatado de uma embarcação pela Proactiva. Apesar de todos terem chegado a salvo em um porto na Itália, o socorrista afirma que o Golfo Azzurro quase entrou em colapso. Isso porque a capacidade máxima do barco, de cerca de 500 pessoas, quase foi ultrapassada.
“Até 350, 400 pessoas, você tem mais ou menos como levar no barco. Mas mais, não, porque não têm onde ficar. E você ainda tem que cozinhar para todos, levar comida para todos, água para todos.”
Por mais que as estatísticas sejam atualizadas diariamente e os números mostrem um panorama histórico razoavelmente detalhado – há barcos que afundam longe da vista de autoridades e voluntários, sem deixar sobreviventes para contar a história –, não há como definir tendências ou prever que tipo de navegação as ONGs terão que resgatar.
Foi assim na primeira missão do salva-vidas argentino com a Proactiva na costa da Líbia. Depois de levar os 494 refugiados a um porto seguro, a missão retornou à zona de busca e resgate. Ao fim da missão, já de volta à ilha de Malta, onde desembarcariam, os voluntários avistaram um barquinho em alto-mar, com casco de fibra de vidro e apenas três ocupantes.
Para surpresa da ONG, os refugiados, todos de nacionalidade líbia, já haviam percorrido quase dois terços das 160 milhas náuticas que separam a Líbia do território europeu. Eles foram localizados porque tinham um telefone digital e lançaram um chamado de socorro interceptado pela Proactiva Open Arms.
Esses três refugiados líbios… Parece cômico, mas eles precisaram fugir por serem ateus. Por não ter religião. Além disso, dois deles eram músicos. Um tocava violão, o outro tocava gaita. E a razão pela qual tiveram que fugir é porque queimaram um centro cultural onde eles trabalhavam e faziam festas. Como se juntavam homens e mulheres, e isso não estava permitido pela religião, decidiram queimar o lugar. Eles decidiram escapar antes de sofrer um atentado.”
Depois de percorrerem 100 milhas náuticas, os três fugitivos da Líbia ainda tiveram que passar três dias dentro do barco Golfo Azzurro, sem saber qual seria seu destino. O motivo foi um impasse diplomático entre Malta e Itália.
“Quando nos dirigíamos até a Itália, os italianos nos disseram para levá-los até a ilha de Malta. E quando fomos até Malta, os malteses nos diziam para levá-los para a Itália. Assim estivemos nessa briga diplomática entre Malta e Itália por três dias. Sem poder entrar em nenhum porto”, diz ele. “Até que tivemos uma avaria no motor, solicitamos ingresso no porto de Pozzallo, na Itália, e finalmente pudemos desembarcar os três refugiados líbios”, relembra Kosoblik.
Depois de meses acumulando histórias de resgates no Mar Mediterrâneo e duas semanas de descanso no outono europeu, Kosoblik retoma, na semana que vem, seu trabalho diário como guarda-vidas na temporada de praia na Argentina. “Até o ano que vem, de verão a verão.”
G1